Enquanto passava pela Ave. Montaigne em Paris, em maio/2010, local que concentra as principais lojas das mais célebres marcas de todo o mundo, algo meio que “perdido/esquecido”, me chamou a atenção em meio ao buzz daquela avenida. Vi uma dessas placas em cimento, informando que alguém famoso viveu ali, o que é comum na França. Quando me aproximei e li, imediatamente fotografei aquele marco que, para mim, brasileira, causou um orgulho enorme. Lamento que pouquíssimas pessoas conheçam a história de vida de um homem tão especial como este brasileiro. Por isso, resolvi compartilhar com vocês não apenas a foto, mas também, e principalmente, sua história.
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A placa em homenagem à Souza Dantas está entre os dois toldos à direita, do que hoje é a Maison Salvatore Ferragamo. |
No início dos anos 40, desafiar as orientações mais banais do Estado Novo, era assustador. De acordo com o caso, o destino inevitável era a prisão. Na Europa, este período foi ainda pior, pois o avanço da ocupação nazista criou um clima de total terror.
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O Embaixador Luiz de Souza Dantas |
Foi nesse cenário que se passou o capítulo mais intenso da vida do embaixador Luiz Martins de Souza Dantas. Durante 20 anos, Souza Dantas estava no comando da missão diplomática brasileira na França. Movido por aquilo que ele mais tarde chamou de "sentimento cristão de misericórdia", ele desafiou duas ditaduras ao mesmo tempo, concedemdo centenas de vistos diplomáticos de entrada no Brasil a pessoas que, do ponto de vista da política de imigração brasileira, eram considerados indesejáveis. Eram judeus, comunistas e homossexuais que estavam fugindo do horror do nazismo. Com suas ações, Souza Dantas salvou cerca de 800 pessoas do extermínio. Ele se tornou o equivalente brasileiro ao industrial alemão Oskar Schindler, que salvou 1.200 pessoas do Holocausto, segundo o que foi narrado por Steven Spielberg em seu filme, A Lista de Schindler. As ações do diplomata brasileiro ficaram esquecidas por anos. Só há pouco tempo elas começaram a ter o seu real lugar também na história do Brasil. Em junho de 2003, Souza Dantas foi proclamado "Justo entre as Nações". Ele se tornou um dos poucos a receber tal distinção do Museu do Holocausto, em Israel, concedida somente àqueles que, sob o jugo nazista, arriscaram-se pelo bem de outras pessoas.
As atitudes de Souza Dantas, entretanto, ainda não estão nos livros didáticos. Durante décadas, seu feito ficou restrito à memória das famílias que foram salvas por ele. Uma parte importante dessa história ficou esquecida, juntamente com outros documentos, em meio à burocracia do Estado Brasileiro, mantida como memorandos históricos nos arquivos do Itamaraty e no Arquivo Nacional. Juntando essas duas fontes de informação, o historiador carioca, Fabio Koifman, construiu uma biografia mais precisa do embaixador. O resultado foi sua dissertação de mestrado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Os mais de 7.500 documentos reunidos por Fábio Koifman ajudaram-no a compor a lista dos 425 judeus salvos por Souza Dantas. Esta lista foi a base do processo de reconhecimento do Museu do Holocausto. Sem contar os depoimentos colhidos durante os quatro anos de trabalho, surgiram histórias impressionantes, até então desconhecidas, como a do diretor do Teatro Polonês, Zbigniew Ziembinski, considerado um dos maiores revolucionários das artes cênicas no Brasil. Foi graças a Souza Dantas, que Ziembinski chegou do Rio de Janeiro, em 1941, depois de peregrinar pela Europa em busca de uma saída do inferno da guerra. "Tinha gente deitada no chão, junto às embaixadas, pedindo, esperando, submetidas às piores zombarias, às piores torturas", lembrou Ziembinski anos mais tarde, em um registro sem precedentes de suas memórias. "Até o momento em que, de repente, ficamos sabendo que havia um Quixote... O famoso embaixador Dantas".
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Ici a vecu pendant 22 ans un grand ami de la France, Luiz de Souza Dantas, Ambassateur du Brésil à Paris, de 1922 à 1944.
Aqui viveu por 22 anos um grande amigo da França, Luiz de Souza Dantas, Embaixador do Brasil na França, de 1922 a 1944. |
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Ziembinski, cuja origem judaica nunca foi confirmada, estava entre as centenas de pessoas que vieram para o Brasil nos navios que atravessaram o Atlântico. A viagem não foi um grande problema. O maior obstáculo para os refugiados não era conseguir um navio, apesar de serem raros naqueles tempos. O mais difícil era conseguir os vistos necessários para chegar aos países de destino. Como acontece ainda hoje em dia, o êxodo de refugiados era um fantasma para muitas nações. No Brasil, houve um outro problema somado à lista de dificuldades, a orientação do governo Vargas contrária à imigração judaica. No entanto, ciente dos riscos envolvidos em contrariar Getúlio, Souza Dantas mandou abrir as portas de sua embaixada em Vichy, para onde a representação diplomática brasileira fora transferida após a ocupação nazista da França.
Neste ínterim, sua coragem trouxe-lhe problemas, como um inquérito aberto pelo Departamento Administrativo do Serviço Público – DASP, criado por Getúlio Vargas. Ele foi acusado de conceder vistos irregulares. Em um telegrama do Itamaraty, Souza Dantas afirmou em sua defesa que, após a proibição, ele não concedeu "um único visto". Era mentira. Foi desobedecendo às ordens expressas de Getúlio Vargas que ele ainda salvou dezenas de pessoas. A prova viva do destemor do diplomata chegou ao historiador Fábio Koifman através do testemunho de Chana Strozemberg, polonesa cujo visto fora emitido em janeiro de 1941, um mês após a proibição, mas com dados falsos. O marido da Sra. Chana Strozemberg, em gratidão, insistiu que Souza Dantas aceitasse um presente. Como resposta, ouviu uma sugestão: “o senhor deveria doá-lo para a Cruz Vermelha Internacional”.
Para colocar em prática estas ações de solidariedade, Souza Dantas usou os mais diversos arquivos de que dispunha. Ele concedeu vistos diplomáticos a portadores de passaportes comuns para que eles tivessem maior possibilidade de aceitação no destino. Alguns deles sequer tinham um passaporte comum. Ele costumava escrever em francês nos passaportes para facilitar a leitura no porto de embarque. Apesar de utilizar uma língua estrangeira, o francês, num papel destinado às autoridades da imigração brasileira, ele tomava o cuidado de seguir todos os procedimentos de rotina para o selamento dos passaportes. Fábio Koifman garante que esta foi uma das maneiras da concessão de vistos às pessoas. Em outros casos, o embaixador ficava como mediador entre os colegas de outras embaixadas para obtenção de vistos como se fossem brasileiros. A lista dos bens deixados pelo diplomata, encontrada em seu quarto no Grande Hotel de Paris, onde viveu no período de sua morte, em 1954, registra como o item mais valioso um cordão em ouro com o medalhão do Barão do Rio Branco. A melhor parte da história das memórias do embaixador é que, em uma época na qual muitos diplomatas vendiam vistos e aceitavam jóias como pagamento, o embaixador brasileiro, Luiz Martins de Souza Dantas, nunca se deixou corromper.
A partir do cuidadoso trabalho do Professor Koifman temos hoje uma das mais dignificantes biografias brasileiras.
Fonte: The International Raoul Wallenberg Foundation