Estou lendo um livro de quase quinhentas páginas e para mim está parecendo que ele é um livro daqueles fininhos. Quando se trata de leitura, não há o que discutir, ela tem de ser agradável, ou seja, você precisa gostar do assunto que está lendo, senão podem ser apenas duas páginas, e ainda assim, a leitura será enfadonha.
Estou lendo o livro “Depoimento” de Carlos Lacerda. Sei que o Lacerda era, e continua sendo, assim: ou você ama ou odeia. Faço parte daqueles que o amam. Carlos Lacerda já não está entre nós e deixou – acima das polêmicas sobre ele – a certeza de quem não passou pela vida na omissão e no comodismo. Sempre achei sua gestão como governador do ex-Estado da Guanabara eficiente. Entretanto, precisava ler mais sobre ele. Obviamente não estou limitada a este livro. Há vários livros tentadores sobre esse líder a serem lidos. Por hora, quero colocar estas palavras na internet. Ele fala sobre os conceitos de esquerda e direita e suas diferenças. Devemos ter em mente que esse depoimento foi dado a um grupo de jornalistas em 1977, dois meses antes do seu falecimento, aos 63 anos, na Clínica São Vicente no Rio de Janeiro, após ter contraído uma gripe comum. Pois é, um dos três líderes da Frente Ampla (Lacerda, JK e Jango) que morreu sob condições, no mínimo, estranhas. Eis o texto.
Essa minha experiência, essa minha aproximação com os comunistas pode ter sido chamada de esquerdismo juvenil. Se você atribui a isso uma conotação, vamos dizer, um pouco assim, como eu vou dizer? Não é bem de zombaria, mas um pouco de coisa muito provisória, a resposta é não. Foi mais profunda.
Eu nunca fui, em outras palavras, da esquerda festiva. Essa glória eu tenho, nunca pertenci à esquerda festiva, que inclusive é um fenômeno relativamente novo. Eu nunca seria capaz de fazer o papel do Chico Buarque de Holanda, cuja música eu aprecio muito e cujo caráter não aprecio nada. Estou falando dele, mas não especialmente dele. Só citando um exemplo. Digo isso porque é uma esquerda festiva, que é contra o regime no qual ele vive, no qual se instala, do qual participa lindamente, maravilhosamente etc. Eu não conheço nenhum sacrifício que ele tenha feito senão a censura em suas músicas por suas ideias. Agora, acho que se ele tem essas ideias, então seja coerente, viva essas ideias, viva de acordo com elas. Isso não é nenhum caso particular com o Chico... Estou apenas dando um exemplo. Enfim, tenho horror à esquerda festiva, porque acho que é uma forma parasitária de declarar guerra a uma sociedade da qual se beneficia e participa integralmente.
Hoje em dia tenho muito medo da palavra esquerda, como tenho medo da palavra direita, porque acho que a evolução política do mundo confundiu muito essas noções. Antigamente, a gente sabia o que era um reacionário. Na Revolução Industrial, um reacionário era um lord que vivia sem trabalhar, à custa do trabalho dos párias indianos e do trabalho de crianças de 12 anos nas fábricas de tecidos ou nas minas de carvão; então, esse era um reacionário. Um revolucionário era quem declarava guerra a tudo isso e que fazia qualquer sacrifício para acabar com aquela situação.
Depois, numa certa época, um homem de esquerda era quem queria fazer certas reformas através da manifestação da vontade do povo: eleições livres, comícios, explicações ao povo, enfim educação política do povo, debates, para chegar a determinadas posições reformistas, ou até mais radicais; enquanto um reacionário era quem não queria eleições, queria uma ditadura, queria uma elite dominante e uma massa obediente.
A partir de certa altura da evolução política do mundo, isso se embaralhou completamente: os reacionários querem eleições e a esquerda não as quer. Só as quer quando está fora do poder, quando está no poder, proíbe.
Então, a pergunta que eu faço a mim mesmo muitas vezes – eu já respondi, mas não vejo os outros se fazerem suficientemente – é esta: Perón era de esquerda ou de direita? Getúlio Vargas era de esquerda ou de direita? Apenas para citar dois exemplos aqui, em casa. Se formos para o resto do mundo, também encontraremos um pouco esse mesmo tipo de coisas.
O Mussolini fez na Itália certas reformas que seriam chamadas de esquerda, até pela própria formação dele, que era eminentemente esquerdista. Por outras palavras, acho que não há nada mais parecido, nada mais próximo de um homem de extrema esquerda do que um homem de extrema direita, na medida em que, no fundo, eles se caracterizam por uma forma de elitismo, ou chame-se isso pelo nome que quiser.
Os comunistas entendem que eles são uma vanguarda do proletariado, portanto uma elite incumbida de governar o mundo em nome e em favor dessa grande massa, que é chamada a votar unanimemente, quando é chamada a votar. Os fascistas fazem exatamente a mesma coisa.
De maneira que para mim esse conceito de esquerda e direita hoje se resumiria numa outra colocação. Quero dizer: se o sujeito acha que a injustiça é uma coisa, por assim dizer, de origem divina, que está na natureza humana aceitá-la e que, portanto, é insuscetível de modificação e se conforma com ela, então ele é de direita. Se o sujeito, sem ilusões sobre utopias, acha que tem obrigação de lutar a vida inteira para diminuir o coeficiente de injustiça do mundo, ele é de esquerda.
Quer dizer: se o sujeito acha que não há o direito de usufruir certos privilégios num país em que a grande maioria não tem direitos, ele é de esquerda, seja qual for a sua posição política: liberal, conservadora ou reformista. Se ele tem, fundamentalmente, ele é, na minha opinião, um sujeito de esquerda.
Sem dúvida, a expressão “de esquerda” é mais lisonjeira do que a “de direita”, mas o fato de muita gente achar uma coisa, uma determinada coisa, não significa que ela esteja certa. Quer dizer apenas que a maior parte das pessoas é mal informada.
A posição de esquerda é mais popular na medida em que não tem compromissos com a ordem estabelecida; então não tem obrigação nenhuma de manter certas instituições e certos conceitos sem os quais a sociedade não se organiza. Por outras palavras, posso ser de esquerda e ser contra a existência da Polícia, é facílimo; isso porque não estou no poder. Agora, se estiver no poder e um grupo de terroristas pegar 100 reféns inocentes e ameaçar degolá-los se determinadas coisas que impõem não forem atendidas, aí vou sentir a necessidade da Polícia. E então? O que eu sou? De esquerda ou de direita?
Acho que não perco absolutamente a minha condição de sujeito que simpatiza com a luta contra a injustiça se eu achar que entre os direitos humanos se inclui, como direito fundamental, o direito à vida e que tanto atenta contra os direitos humanos o coronel que tortura o preso, quanto atenta contra o primeiro dos direitos humanos, que é o direito à vida, o terrorista que prende um refém inocente. Se dependesse de mim, fuzilaria todos na hora, depois iria discutir.
A tortura de um homem preso e dominado dentro de uma sala me revolta muito. Mas na hora guerra é guerra, por isso não tenho a menor pena do Lamarca. Acho que a morte dele foi justíssima, absolutamente normal. Morreu bravamente, morreu combatendo, como um guerreiro que era. Agora, não tenho nenhuma simpatia pelo personagem, como também não tenho nenhuma simpatia pelo personagem Che Guevara. Se me perguntassem eu diria – prefiro Che Guevara ao Filinto Müller, evidentemente como figura humana. Mas acho que ambos no poder fariam exatamente a mesmas coisas; a sorte de Che Guevara foi ter sido morto antes de chegar ao poder e talvez o azar do Filinto Müller foi ter estado no poder, e mostrado do que era capaz.
Há um livro que vamos publicar de um venezuelano chamado Carlos Rangel, que se chama Do Bom Selvagem ao Bom Revolucionário, que é uma análise dos mitos latino-americanos. Ele exclui o Brasil por não conhecê-lo e por achar que, embora se pareça com a América Latina, existem muitas diferenças, como todo mundo sabe. Então analisa os mitos em torno dos quais vive o latino-americano da América espanhola, começando pelo mito do bom selvagem – os selvagens eram todos muito bonzinhos, tinham civilizações maravilhosas, mas os astecas matavam dez mil virgens por ano para oferecer seus corações aos ídolos; os incas, tão atrasados que não conheciam a roda. Então endeusou-se isso tudo; o maravilhoso selvagem de Jean-Jacques Rousseau. E foram os espanhóis, esses bárbaros, selvagens e cruéis, que desembarcaram lá com os cavalos – mataram muita gente, morreram também – e trouxeram vacina, escola e uma porção de outras coisas.
E daí, do mito do bom selvagem, vai analisando os mitos todos até o do bom revolucionário, e no caso dá como exemplo o Che Guevara, que se tornou assim uma espécie de símbolo do inconformismo mundial. Não há jovem hoje no mundo que não deseje, no fundo, ter sido assim um Che Guevara bem-sucedido.
Agora, realmente qual foi a obra dele? Ele esteve ou não no poder lá em Cuba? O que é que ele fez em Cuba? Seguiu um destino de inconformado, de revoltado permanente, seja se você quiser pegar elementos freudianos, pela asma, pela incompatibilidade com a família, elementos que eu desprezo um pouco, pois não dou tanta importância a isso, seja por uma vocação de inconformismo estéril. Ele esteve no poder e que é que ele fez no poder? Ele melhorou a situação de Cuba? Melhorou a situação dos trabalhadores cubanos? Não, ele foi exportar a revolução porque era uma força que tinha dentro de si; era o permanente inconformismo com qualquer coisa que significasse uma certa tentativa, um certo esforço para estabilizar a sociedade, uma sociedade reformada, melhor do que essa etc., mas uma sociedade qualquer, organizada.
No fundo, Che era um anarquista; bravo, valente, isso ninguém discute. Mas valentia não é qualidade, não basta. Para ser realmente um herói, no sentido político, não basta ser valente. Senão, qualquer sujeito do Esquadrão da Morte seria herói, pois são valentes também, porque quando eles vão ao morro matar bandidos, também sujeitos a morrer. E nós não vamos achar que são heróis por causa disso.
De maneira que esse conceito de esquerda e direita... Há hoje, inclusive, no mundo inteiro um esforço enorme dos sociólogos e dos cientistas políticos sérios para rever completamente esse conceito. E uma das provas que eu acho mais sérias da ignorância brasileira é essa confusão dos conceitos entre esquerda e direita. Acho que hoje somos dos países do mundo em que a ignorância domina mais – e uma das coisas mais terríveis, um dos fracassos mais terríveis da Revolução de 64, foi a despolitização, a desinformação do povo brasileiro justamente quando ele começava a se informar e a se politizar.
Primeiro a loucura do Jânio Quadros, desapontando e decepcionando milhões de brasileiros que acreditaram que era possível... Pela primeira vez esse homem tinha o apoio popular quase unânime, pela primeira vez o Congresso estava de joelhos diante dele pedindo, pelo amor de Deus, que mandasse projetos para serem votados, pela primeira vez o Exército, a Marinha e a Aeronáutica estavam de acordo com tudo isso. Esse homem jogou fora tudo e mais tarde a Revolução, em vez de fazer um processo de informação e de politização do povo brasileiro, despolitizou-o completamente. De tal modo que hoje ou o sujeito é – mentalmente pelo menos – um guerrilheiro ou é um alienado. Essa é a meu ver a tragédia.
Então por isso é que até hoje no Brasil se fala em esquerda e direita, que são expressões jornalísticas usadas para simplificar. Você não pode, numa notícia de jornal, estar dando todas as nuances: “seu” Mitterand, “seu” não sei o quê, “seu” Giscard d’Estaing é isso e aquilo. Então você tem que botar que o Chirac é de direita e que o Mitterand é de esquerda. Eu tenho certeza, para dar esse exemplo, que o dia em que o Mitterand chegar ao poder, vai ser muito mais inimigo dos comunistas do que o Chirac, porque o Chirac é um gaullista e o de Gaulle chegou a conviver com os comunistas.
Outro problema atual é a discussão sobre direitos humanos. Mas, se há muita coisa a fazer a partir da defesa dos direitos humanos? Há, mas é pouco. É muito pouco. Já que estamos falando nisso, quais são os parâmetros, quais são os campos em que isso se define? Não pode ser só no campo da tortura ou não-tortura, que isso é tão óbvio, tão pouco, embora seja muito. E em relação, por exemplo, ao regime econômico? O Celso Furtado, insuspeitíssimo no caso, acaba de publicar um livro no qual declara com todas as letras – e eu sei de uma conversa onde ele vai muito além do que está escrito ali – que depois de observar muito o mundo nesse exílio, concluiu que países ditos capitalistas, como o Japão, conseguiram não só gerar riqueza, mas distribuir melhor a riqueza do que qualquer dos países socialistas.
Então isso exige realmente uma revisão, pois se a gente ficar apenas discutindo apenas os direitos humanos nunca teremos coragem de abordar o problema como um todo. Por exemplo: o Brasil hoje é um país profundamente injusto, não só porque se torturam pessoas ou porque se prendem pessoas, é um país profundamente injusto porque de um lado há um pequeno grupo que tem direito de lucrar o que quiser, contanto que o governo se associe a esse lucro, e de outro lado há gente que não tem acesso à riqueza – não é à distribuição da riqueza -, e aí a meu ver é o engano do Franco Montoro naquele livrinho dele, é o gravíssimo engano demagógico desse pessoal do MDB.
O problema grave no Brasil não é a má distribuição de riqueza, é a não criação de riqueza. A maior parte dos brasileiros, não paga imposto de renda; não é porque a renda deles tenha sido roubada pelos outros, mas porque não tem produtividade para se tornar rentável. Não teve escola, não tem saúde, não tem formação profissional, não tem condições, em suma, mínimas para produzir um mínimo de riqueza que lhe dê participação nela. E isso, que é verdade nas cidades, é ainda muito mais verdade no campo.
Claro, num país em que o chuchu está a vinte cruzeiros o quilo, é preciso uma revolução agrária, mas não aquela besteira de fazer reforma agrária de cartório, quer dizer, em torno da propriedade da terra. É necessária uma revolução agrária em torno do uso racional da terra para produzir mais e baratear o produto, para tornar o chuchu acessível à dona-de-casa que não pode pagar vinte cruzeiros por um quilo. Ou se faz isso, ou realmente se condena esse povo à fome. (Eu estou indo um pouco fora do assunto...)
Se eu pudesse pedir uma coisa a vocês, pediria que isso ficasse porque acho importante, já que vocês estão gravando a minha imagem. Isso é uma coisa que não tenho tido muita ocasião de explicar, compreendem? E eu não queria ser só factual, não; quer dizer, a gente entra na vida pública por determinadas ideias, por determinados conceitos, compreendem? De maneira que se isso puder ficar, eu agradeço. Claro que a gente não vai fazer aqui um debate filosófico.(*) Há certas definições que precisam ser explicadas, porque tudo isso surgiu em torno da pergunta: por que deixei a esquerda?
Estou lendo o livro “Depoimento” de Carlos Lacerda. Sei que o Lacerda era, e continua sendo, assim: ou você ama ou odeia. Faço parte daqueles que o amam. Carlos Lacerda já não está entre nós e deixou – acima das polêmicas sobre ele – a certeza de quem não passou pela vida na omissão e no comodismo. Sempre achei sua gestão como governador do ex-Estado da Guanabara eficiente. Entretanto, precisava ler mais sobre ele. Obviamente não estou limitada a este livro. Há vários livros tentadores sobre esse líder a serem lidos. Por hora, quero colocar estas palavras na internet. Ele fala sobre os conceitos de esquerda e direita e suas diferenças. Devemos ter em mente que esse depoimento foi dado a um grupo de jornalistas em 1977, dois meses antes do seu falecimento, aos 63 anos, na Clínica São Vicente no Rio de Janeiro, após ter contraído uma gripe comum. Pois é, um dos três líderes da Frente Ampla (Lacerda, JK e Jango) que morreu sob condições, no mínimo, estranhas. Eis o texto.
Essa minha experiência, essa minha aproximação com os comunistas pode ter sido chamada de esquerdismo juvenil. Se você atribui a isso uma conotação, vamos dizer, um pouco assim, como eu vou dizer? Não é bem de zombaria, mas um pouco de coisa muito provisória, a resposta é não. Foi mais profunda.
Eu nunca fui, em outras palavras, da esquerda festiva. Essa glória eu tenho, nunca pertenci à esquerda festiva, que inclusive é um fenômeno relativamente novo. Eu nunca seria capaz de fazer o papel do Chico Buarque de Holanda, cuja música eu aprecio muito e cujo caráter não aprecio nada. Estou falando dele, mas não especialmente dele. Só citando um exemplo. Digo isso porque é uma esquerda festiva, que é contra o regime no qual ele vive, no qual se instala, do qual participa lindamente, maravilhosamente etc. Eu não conheço nenhum sacrifício que ele tenha feito senão a censura em suas músicas por suas ideias. Agora, acho que se ele tem essas ideias, então seja coerente, viva essas ideias, viva de acordo com elas. Isso não é nenhum caso particular com o Chico... Estou apenas dando um exemplo. Enfim, tenho horror à esquerda festiva, porque acho que é uma forma parasitária de declarar guerra a uma sociedade da qual se beneficia e participa integralmente.
Lacerda fez para a revista Manchete uma série de entrevistas com personalidades ligadas à arte brasileira. Aqui com o compositor Tom Jobim. |
Hoje em dia tenho muito medo da palavra esquerda, como tenho medo da palavra direita, porque acho que a evolução política do mundo confundiu muito essas noções. Antigamente, a gente sabia o que era um reacionário. Na Revolução Industrial, um reacionário era um lord que vivia sem trabalhar, à custa do trabalho dos párias indianos e do trabalho de crianças de 12 anos nas fábricas de tecidos ou nas minas de carvão; então, esse era um reacionário. Um revolucionário era quem declarava guerra a tudo isso e que fazia qualquer sacrifício para acabar com aquela situação.
Depois, numa certa época, um homem de esquerda era quem queria fazer certas reformas através da manifestação da vontade do povo: eleições livres, comícios, explicações ao povo, enfim educação política do povo, debates, para chegar a determinadas posições reformistas, ou até mais radicais; enquanto um reacionário era quem não queria eleições, queria uma ditadura, queria uma elite dominante e uma massa obediente.
A partir de certa altura da evolução política do mundo, isso se embaralhou completamente: os reacionários querem eleições e a esquerda não as quer. Só as quer quando está fora do poder, quando está no poder, proíbe.
Então, a pergunta que eu faço a mim mesmo muitas vezes – eu já respondi, mas não vejo os outros se fazerem suficientemente – é esta: Perón era de esquerda ou de direita? Getúlio Vargas era de esquerda ou de direita? Apenas para citar dois exemplos aqui, em casa. Se formos para o resto do mundo, também encontraremos um pouco esse mesmo tipo de coisas.
O Mussolini fez na Itália certas reformas que seriam chamadas de esquerda, até pela própria formação dele, que era eminentemente esquerdista. Por outras palavras, acho que não há nada mais parecido, nada mais próximo de um homem de extrema esquerda do que um homem de extrema direita, na medida em que, no fundo, eles se caracterizam por uma forma de elitismo, ou chame-se isso pelo nome que quiser.
Os comunistas entendem que eles são uma vanguarda do proletariado, portanto uma elite incumbida de governar o mundo em nome e em favor dessa grande massa, que é chamada a votar unanimemente, quando é chamada a votar. Os fascistas fazem exatamente a mesma coisa.
De maneira que para mim esse conceito de esquerda e direita hoje se resumiria numa outra colocação. Quero dizer: se o sujeito acha que a injustiça é uma coisa, por assim dizer, de origem divina, que está na natureza humana aceitá-la e que, portanto, é insuscetível de modificação e se conforma com ela, então ele é de direita. Se o sujeito, sem ilusões sobre utopias, acha que tem obrigação de lutar a vida inteira para diminuir o coeficiente de injustiça do mundo, ele é de esquerda.
Quer dizer: se o sujeito acha que não há o direito de usufruir certos privilégios num país em que a grande maioria não tem direitos, ele é de esquerda, seja qual for a sua posição política: liberal, conservadora ou reformista. Se ele tem, fundamentalmente, ele é, na minha opinião, um sujeito de esquerda.
Sem dúvida, a expressão “de esquerda” é mais lisonjeira do que a “de direita”, mas o fato de muita gente achar uma coisa, uma determinada coisa, não significa que ela esteja certa. Quer dizer apenas que a maior parte das pessoas é mal informada.
A posição de esquerda é mais popular na medida em que não tem compromissos com a ordem estabelecida; então não tem obrigação nenhuma de manter certas instituições e certos conceitos sem os quais a sociedade não se organiza. Por outras palavras, posso ser de esquerda e ser contra a existência da Polícia, é facílimo; isso porque não estou no poder. Agora, se estiver no poder e um grupo de terroristas pegar 100 reféns inocentes e ameaçar degolá-los se determinadas coisas que impõem não forem atendidas, aí vou sentir a necessidade da Polícia. E então? O que eu sou? De esquerda ou de direita?
Acho que não perco absolutamente a minha condição de sujeito que simpatiza com a luta contra a injustiça se eu achar que entre os direitos humanos se inclui, como direito fundamental, o direito à vida e que tanto atenta contra os direitos humanos o coronel que tortura o preso, quanto atenta contra o primeiro dos direitos humanos, que é o direito à vida, o terrorista que prende um refém inocente. Se dependesse de mim, fuzilaria todos na hora, depois iria discutir.
A tortura de um homem preso e dominado dentro de uma sala me revolta muito. Mas na hora guerra é guerra, por isso não tenho a menor pena do Lamarca. Acho que a morte dele foi justíssima, absolutamente normal. Morreu bravamente, morreu combatendo, como um guerreiro que era. Agora, não tenho nenhuma simpatia pelo personagem, como também não tenho nenhuma simpatia pelo personagem Che Guevara. Se me perguntassem eu diria – prefiro Che Guevara ao Filinto Müller, evidentemente como figura humana. Mas acho que ambos no poder fariam exatamente a mesmas coisas; a sorte de Che Guevara foi ter sido morto antes de chegar ao poder e talvez o azar do Filinto Müller foi ter estado no poder, e mostrado do que era capaz.
Há um livro que vamos publicar de um venezuelano chamado Carlos Rangel, que se chama Do Bom Selvagem ao Bom Revolucionário, que é uma análise dos mitos latino-americanos. Ele exclui o Brasil por não conhecê-lo e por achar que, embora se pareça com a América Latina, existem muitas diferenças, como todo mundo sabe. Então analisa os mitos em torno dos quais vive o latino-americano da América espanhola, começando pelo mito do bom selvagem – os selvagens eram todos muito bonzinhos, tinham civilizações maravilhosas, mas os astecas matavam dez mil virgens por ano para oferecer seus corações aos ídolos; os incas, tão atrasados que não conheciam a roda. Então endeusou-se isso tudo; o maravilhoso selvagem de Jean-Jacques Rousseau. E foram os espanhóis, esses bárbaros, selvagens e cruéis, que desembarcaram lá com os cavalos – mataram muita gente, morreram também – e trouxeram vacina, escola e uma porção de outras coisas.
E daí, do mito do bom selvagem, vai analisando os mitos todos até o do bom revolucionário, e no caso dá como exemplo o Che Guevara, que se tornou assim uma espécie de símbolo do inconformismo mundial. Não há jovem hoje no mundo que não deseje, no fundo, ter sido assim um Che Guevara bem-sucedido.
Agora, realmente qual foi a obra dele? Ele esteve ou não no poder lá em Cuba? O que é que ele fez em Cuba? Seguiu um destino de inconformado, de revoltado permanente, seja se você quiser pegar elementos freudianos, pela asma, pela incompatibilidade com a família, elementos que eu desprezo um pouco, pois não dou tanta importância a isso, seja por uma vocação de inconformismo estéril. Ele esteve no poder e que é que ele fez no poder? Ele melhorou a situação de Cuba? Melhorou a situação dos trabalhadores cubanos? Não, ele foi exportar a revolução porque era uma força que tinha dentro de si; era o permanente inconformismo com qualquer coisa que significasse uma certa tentativa, um certo esforço para estabilizar a sociedade, uma sociedade reformada, melhor do que essa etc., mas uma sociedade qualquer, organizada.
No fundo, Che era um anarquista; bravo, valente, isso ninguém discute. Mas valentia não é qualidade, não basta. Para ser realmente um herói, no sentido político, não basta ser valente. Senão, qualquer sujeito do Esquadrão da Morte seria herói, pois são valentes também, porque quando eles vão ao morro matar bandidos, também sujeitos a morrer. E nós não vamos achar que são heróis por causa disso.
De maneira que esse conceito de esquerda e direita... Há hoje, inclusive, no mundo inteiro um esforço enorme dos sociólogos e dos cientistas políticos sérios para rever completamente esse conceito. E uma das provas que eu acho mais sérias da ignorância brasileira é essa confusão dos conceitos entre esquerda e direita. Acho que hoje somos dos países do mundo em que a ignorância domina mais – e uma das coisas mais terríveis, um dos fracassos mais terríveis da Revolução de 64, foi a despolitização, a desinformação do povo brasileiro justamente quando ele começava a se informar e a se politizar.
Primeiro a loucura do Jânio Quadros, desapontando e decepcionando milhões de brasileiros que acreditaram que era possível... Pela primeira vez esse homem tinha o apoio popular quase unânime, pela primeira vez o Congresso estava de joelhos diante dele pedindo, pelo amor de Deus, que mandasse projetos para serem votados, pela primeira vez o Exército, a Marinha e a Aeronáutica estavam de acordo com tudo isso. Esse homem jogou fora tudo e mais tarde a Revolução, em vez de fazer um processo de informação e de politização do povo brasileiro, despolitizou-o completamente. De tal modo que hoje ou o sujeito é – mentalmente pelo menos – um guerrilheiro ou é um alienado. Essa é a meu ver a tragédia.
Então por isso é que até hoje no Brasil se fala em esquerda e direita, que são expressões jornalísticas usadas para simplificar. Você não pode, numa notícia de jornal, estar dando todas as nuances: “seu” Mitterand, “seu” não sei o quê, “seu” Giscard d’Estaing é isso e aquilo. Então você tem que botar que o Chirac é de direita e que o Mitterand é de esquerda. Eu tenho certeza, para dar esse exemplo, que o dia em que o Mitterand chegar ao poder, vai ser muito mais inimigo dos comunistas do que o Chirac, porque o Chirac é um gaullista e o de Gaulle chegou a conviver com os comunistas.
Outro problema atual é a discussão sobre direitos humanos. Mas, se há muita coisa a fazer a partir da defesa dos direitos humanos? Há, mas é pouco. É muito pouco. Já que estamos falando nisso, quais são os parâmetros, quais são os campos em que isso se define? Não pode ser só no campo da tortura ou não-tortura, que isso é tão óbvio, tão pouco, embora seja muito. E em relação, por exemplo, ao regime econômico? O Celso Furtado, insuspeitíssimo no caso, acaba de publicar um livro no qual declara com todas as letras – e eu sei de uma conversa onde ele vai muito além do que está escrito ali – que depois de observar muito o mundo nesse exílio, concluiu que países ditos capitalistas, como o Japão, conseguiram não só gerar riqueza, mas distribuir melhor a riqueza do que qualquer dos países socialistas.
Então isso exige realmente uma revisão, pois se a gente ficar apenas discutindo apenas os direitos humanos nunca teremos coragem de abordar o problema como um todo. Por exemplo: o Brasil hoje é um país profundamente injusto, não só porque se torturam pessoas ou porque se prendem pessoas, é um país profundamente injusto porque de um lado há um pequeno grupo que tem direito de lucrar o que quiser, contanto que o governo se associe a esse lucro, e de outro lado há gente que não tem acesso à riqueza – não é à distribuição da riqueza -, e aí a meu ver é o engano do Franco Montoro naquele livrinho dele, é o gravíssimo engano demagógico desse pessoal do MDB.
O problema grave no Brasil não é a má distribuição de riqueza, é a não criação de riqueza. A maior parte dos brasileiros, não paga imposto de renda; não é porque a renda deles tenha sido roubada pelos outros, mas porque não tem produtividade para se tornar rentável. Não teve escola, não tem saúde, não tem formação profissional, não tem condições, em suma, mínimas para produzir um mínimo de riqueza que lhe dê participação nela. E isso, que é verdade nas cidades, é ainda muito mais verdade no campo.
Claro, num país em que o chuchu está a vinte cruzeiros o quilo, é preciso uma revolução agrária, mas não aquela besteira de fazer reforma agrária de cartório, quer dizer, em torno da propriedade da terra. É necessária uma revolução agrária em torno do uso racional da terra para produzir mais e baratear o produto, para tornar o chuchu acessível à dona-de-casa que não pode pagar vinte cruzeiros por um quilo. Ou se faz isso, ou realmente se condena esse povo à fome. (Eu estou indo um pouco fora do assunto...)
Se eu pudesse pedir uma coisa a vocês, pediria que isso ficasse porque acho importante, já que vocês estão gravando a minha imagem. Isso é uma coisa que não tenho tido muita ocasião de explicar, compreendem? E eu não queria ser só factual, não; quer dizer, a gente entra na vida pública por determinadas ideias, por determinados conceitos, compreendem? De maneira que se isso puder ficar, eu agradeço. Claro que a gente não vai fazer aqui um debate filosófico.(*) Há certas definições que precisam ser explicadas, porque tudo isso surgiu em torno da pergunta: por que deixei a esquerda?
(*) Carlos Lacerda referia-se à sua posição diante dos conceitos de esquerda e direita. (N. da E.)
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Tô só de olho em você...
Já ia sair de fininho sem deixar um comentário, né?!
Eu gosto de saber sua opinião sobre o que escrevo.
Não tem de ser só elogio... Quero sua opinião de verdade!