Dizem que um dragão sempre luta de frente para o inimigo, acabando por deixar a retaguarda desprevinida. Quantas vezes lutamos assim, desprevenidamente?
Li uma das mais belas páginas sobre o tema no livro “A casa do meu avô”, de Carlos Lacerda. Na página 183, encontra-se o seguinte texto, no qual hoje me reconheço sensivelmente.
"Da raça de Ícaro dificilmente sobra alguém. Sempre chega a hora em que as asas que pretenciosamente nos damos derretem-se ao sol. E caímos, de qualquer altura. Recentemente, publicou-se um livro que analisa, ampliado e explicado cada pormenor, o quadro de Brueghel que está no museu de Bruxelas, A Queda de Ícaro. Esse quadro por si só vale a viagem à Bélgica. O mais extraordinário ali, a par da pintura, que engloba tantos símbolos e propõe tantos enigmas, é que Ícaro cai no mar mas nada se perturba, em redor.
Do homem que partiu à conquista do espaço, do bicho da terra fascinado pela amplidão, vê-se ainda uma perna. Afora essa perna patética que sobrou da sua derrota, a superfície das águas permanece inalterada. Nada flutua do seu corpo, nem do espírito sobre as águas. Continua o lavrador a sua labuta, o navio a sua rota, a ilha permanece cercada de água por todos os lados, para não deixar de ser uma ilha, os carneiros continuam acarneirados sob o gesto imemorial do pastor que guarda a sua submissão. O céu não dá mostras de cólera nem de indulgência – o céu a que Ícaro pretendeu alçar-se não conhece o perdão. Nada, nada se altera. A intolerável pretensão, o desafio à mediocridade e ao conformismo, que mereceram castigo tamanho, recebem o merecido. A vingança das potestades que ele desafiou está consumada. A queda de Ícaro é a seca advertência a toda rebeldia, a imposição do conformismo. A consagração da mediocridade como regra de bem viver. Tudo em redor vai bem. Ícaro já desapareceu nas águas. Ninguém se dá conta, naquela paz excessiva e suspeita de que um dia essas águas crescerão sobre o mundo, a ilha, o pastor, as ovelhas, os símbolos, as alusões afinal decifradas nesse que tem a força de uma profecia. Depressa todos se conformam, procuram esquecer o episódio..."
Na mitologia grega, Dédalo e seu filho Ícaro foram aprisionados na ilha de Creta. Dédalo, um inventor, usou seu talento para construir dois pares de asas, com os quais ele e seu filho poderiam fugir de sua prisão. O inventor advertiu seu filho Ícaro para que este não voasse muito alto, mas Ícaro ignorou o conselho do pai. Ao subir muito, o sol derreteu a cera que mantinha as asas coladas às costas do jovem, que caiu no mar e se afogou.
O tema inspirado na lenda de Ícaro tem sido tratado desde a Antiguidade, mas não da maneira como Pieter Brueghel o abordou em seu quadro de 1558, A Queda de Ícaro. O pintor deixou de enfatizar a tragédia pessoal do menino para ater-se às reações das pessoas ao redor do acontecimento. Em vez de pintar Ícaro no céu, caindo, Brueghel mostra o jovem já na água. Seu pai, Dédalo, não é retratado na pintura. As únicas partes visíveis de Ícaro são suas pernas, que também já estão desaparecendo no mar. Sua morte, entretanto, não provoca sequer uma onda, e ninguém parece se importar com a situação. Não fosse o título da obra, da mesma maneira, os espectadores poderiam facilmente ignorar esse detalhe narrativo. Na realidade, nenhuma das atividades rotineiras presentes na cena é interrompida pela morte de Ícaro.
Li uma das mais belas páginas sobre o tema no livro “A casa do meu avô”, de Carlos Lacerda. Na página 183, encontra-se o seguinte texto, no qual hoje me reconheço sensivelmente.
"Da raça de Ícaro dificilmente sobra alguém. Sempre chega a hora em que as asas que pretenciosamente nos damos derretem-se ao sol. E caímos, de qualquer altura. Recentemente, publicou-se um livro que analisa, ampliado e explicado cada pormenor, o quadro de Brueghel que está no museu de Bruxelas, A Queda de Ícaro. Esse quadro por si só vale a viagem à Bélgica. O mais extraordinário ali, a par da pintura, que engloba tantos símbolos e propõe tantos enigmas, é que Ícaro cai no mar mas nada se perturba, em redor.
Do homem que partiu à conquista do espaço, do bicho da terra fascinado pela amplidão, vê-se ainda uma perna. Afora essa perna patética que sobrou da sua derrota, a superfície das águas permanece inalterada. Nada flutua do seu corpo, nem do espírito sobre as águas. Continua o lavrador a sua labuta, o navio a sua rota, a ilha permanece cercada de água por todos os lados, para não deixar de ser uma ilha, os carneiros continuam acarneirados sob o gesto imemorial do pastor que guarda a sua submissão. O céu não dá mostras de cólera nem de indulgência – o céu a que Ícaro pretendeu alçar-se não conhece o perdão. Nada, nada se altera. A intolerável pretensão, o desafio à mediocridade e ao conformismo, que mereceram castigo tamanho, recebem o merecido. A vingança das potestades que ele desafiou está consumada. A queda de Ícaro é a seca advertência a toda rebeldia, a imposição do conformismo. A consagração da mediocridade como regra de bem viver. Tudo em redor vai bem. Ícaro já desapareceu nas águas. Ninguém se dá conta, naquela paz excessiva e suspeita de que um dia essas águas crescerão sobre o mundo, a ilha, o pastor, as ovelhas, os símbolos, as alusões afinal decifradas nesse que tem a força de uma profecia. Depressa todos se conformam, procuram esquecer o episódio..."
Na mitologia grega, Dédalo e seu filho Ícaro foram aprisionados na ilha de Creta. Dédalo, um inventor, usou seu talento para construir dois pares de asas, com os quais ele e seu filho poderiam fugir de sua prisão. O inventor advertiu seu filho Ícaro para que este não voasse muito alto, mas Ícaro ignorou o conselho do pai. Ao subir muito, o sol derreteu a cera que mantinha as asas coladas às costas do jovem, que caiu no mar e se afogou.
O tema inspirado na lenda de Ícaro tem sido tratado desde a Antiguidade, mas não da maneira como Pieter Brueghel o abordou em seu quadro de 1558, A Queda de Ícaro. O pintor deixou de enfatizar a tragédia pessoal do menino para ater-se às reações das pessoas ao redor do acontecimento. Em vez de pintar Ícaro no céu, caindo, Brueghel mostra o jovem já na água. Seu pai, Dédalo, não é retratado na pintura. As únicas partes visíveis de Ícaro são suas pernas, que também já estão desaparecendo no mar. Sua morte, entretanto, não provoca sequer uma onda, e ninguém parece se importar com a situação. Não fosse o título da obra, da mesma maneira, os espectadores poderiam facilmente ignorar esse detalhe narrativo. Na realidade, nenhuma das atividades rotineiras presentes na cena é interrompida pela morte de Ícaro.
Ficha Técnica do quadro
Autor: Pieter Brueghel, O Velho
Onde: Museu Real de Belas-Artes, Bruxelas, Bélgica
Ano: 1558
Técnica: Óleo sobre tela (transposto de um painel)
Tamanho: 73,5cm x 112cm
Movimento: Renascimento Nórdico (Brueghel era flamengo, nascido em Flandres)
Autor: Pieter Brueghel, O Velho
Onde: Museu Real de Belas-Artes, Bruxelas, Bélgica
Ano: 1558
Técnica: Óleo sobre tela (transposto de um painel)
Tamanho: 73,5cm x 112cm
Movimento: Renascimento Nórdico (Brueghel era flamengo, nascido em Flandres)
Fontes:
- A casa do meu avô, Carlos Lacerda – Ed. comemorativa – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005
- Site Universia.com.br - Projeto Um Pouco de Arte para sua Vida
- A casa do meu avô, Carlos Lacerda – Ed. comemorativa – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005
- Site Universia.com.br - Projeto Um Pouco de Arte para sua Vida